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19
mar-2014

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Na praia de Oiteiros, litoral oeste do Maranhão, uma Amazônia costeira ainda conserva alguns de seus traços. Tanto na flora e sua generosidade de espécies dos alagados e baixios, quanto nos hábitos do povo, no tempo lento que esgueira-se preguiçoso por entre as horas quentes. Também na manufatura diária e calma dos fazedores de cofos, dos artesãos da pescaria cosendo fios, das quebradeiras de babaçu, dos carpinteiros navais e casas de farinha.

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A vida prossegue ainda calma nesse lugar. Mas não livre das mazelas; muito menos impune às rupturas. Basta passar na porta da escola para ver contundente na arquitetura o traçado que separa a vida comunitária, sua natureza, os pescadores e seu conhecimento, a carpintaria naval e seus mestres, os tantos artesãos e seus saberes ativos na economia do lugar, de um projeto educacional alienante, de razão obtusa, de salas e paredes muito estreitas e de costas para o mar.

Mas a brincadeira, o lugar real de viver, esse não pode esperar. A escola das almas, a oficina da criação, a engenharia de pontes que interliga os saberes, essa não espera e acontece todos os dias nos quintais, nos barcos ancorados na praia, na vida real das crianças.

Com a chegada do senhor Manoel, vindo de Portugual há 40 anos, agregou à vida dos pescadores um novo tipo de embarcação, desconhecida na região. Mas também à vida das crianças imantou-se um novo sonho: construir essas naus de duas proas, leves e velozes, engenhosas, e com jeito mais arrojado de navegar. Dos rescaldos e sobras do estaleiro os meninos e algumas meninas começaram a fazer seus catamarãs. O dono do lugar nunca os impediu de andar ali às bordas vendo e aprendendo com os olhos.

Crianças seguem como piratas, à revelia dos ditames e reprimendas, aprendendo de assalto, na marra, na vontade. Uns são dos detalhes, outros da forma geral. Uns sabem mais nós, outros melhor entalham. Cada um pega como pode dos sobejos do trabalho adulto. Seguem assim vasculhando o corpo do barco, entendendo sua anatomia e a serventia de cada peça, as consequências de cada função. Fazem muitas sínteses. Tudo precisa funcionar.

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As brincadeiras de embarcação são quase uma luteria. As construções devem ter simetria para que depois seja possível afinar o instrumento. Violão torto, difícil, quase impossível será de afinar. Barquinho de mastro além das proporções não suportará o peso das velas. Leme frouxo não terá precisão de equilíbrio. Bolina leve e curta não sustentará o peso de fundo que apruma o barco no mar.

O resultado do que é feito, só depois se sabe o efeito. Ao fim de uma manhã de construções pode se esbarrar com um vento muito forte. Por melhor que tenha sido o empenho em bem fazer haverá necessariamente que afinar, afinar e afinar o barquinho para que ele atinja o centro de todo o objetivo: singrar com leveza as águas. Fazer barquinhos é se imaginar cortando, sulcando, laminando águas. Menino fazedor de barcos tem na proa de sua imaginação uma hidrodinâmica afilada, capaz de correr por entre as águas sem se ater, com atrito mínimo, deslizante, de guia livre, esquiva do peso móvel do mar.

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O senhor português, Manoel, provou, sem pretensão qualquer, que a comunidade é uma escola; que a escola deveria saber-se comunidade. Não fez do seu estaleiro uma instituição de aprendizado, mas outorgou liberdade para as crianças verem, frequentarem, aprenderem.

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Criança é mesmo assim: vive de ver, de tocar, de sonhar sobre os fundamentos, as estruturas da vida material. Quando tem uma brecha, por entre uma fenda do fazer adulto, rápido penetra, pega o que quer, e segue contente, dona de pequeninas vitórias em sua refazenda. Pirata dos cochilos do fazer adulto.

Trechos do texto Naufragos e Piratas do Aprendizado de Gandhy Piorski
Fotos: Renata Meirelles

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